Kant, o imperativo categórico e a promoção do filho Mourão.
Desde
anteontem há discussões acaloradas sobre a promoção do filho do General Mourão.
E recebi alguns pedidos para dar a minha opinião. Certo ou errado?
Esse debate
é interessante porque ele revela muito do entendimento sobre ética e moral dos
brasileiros. Ou a falta dele.
Revela que
como nação e cidadãos temos muito que evoluir.
Immanuel
Kant (https://pt.wikipedia.org/wiki/Imperativo_categ%C3%B3rico)
um dos filósofos mais influentes sobre a questão da ética e da moral, afirma
que imperativo categórico é o dever de toda pessoa agir conforme princípios os
quais considera que seriam benéficos caso fossem seguidos por todos os seres
humanos. Se todos aqueles que chegarem ao poder se beneficiarem desse fato para
além do previsto em seu contrato de trabalho, beneficiando filhos, amigos, etc.
voltamos a situação de aparelhamento anterior. E nesse caso, não pode haver tolerância
– o Brasil é um paciente na UTI e precisamos de honestidade, clareza e transparência.
Não se sabe
e não se pode provar que o recém-empossado vice-presidente tenha se mexido para
facilitar ou viabilizar essa promoção. Mas faz parte do imperativo categórico
saber avaliar se o presidente do BB ao promover o rapaz fez um movimento para
se aproximar do governo e ganhar poder e influencia. Isso seria, mesmo que de
forma velada, um ato de corrupção. Temos um problema: se o vice-presidente
pediu é patrimonialismo. Se não pediu e não entendeu a motivação do presidente
do banco pode ter cruzado, mesmo que involuntariamente, uma fronteira perigosa.
O sujeito moral, nesse caso, deve entender que no núcleo da ética está a
capacidade de renúncia. Se o individuo não coloca um freio no oportunismo
alheio, abre brechas para a degradação do sistema. A ética na politica
pressupõe que o individuo seja capaz de colocar o interesse publico acima do
privado. Dizer não à promoção é o que se espera em termos éticos e morais.
Desde
tempos imemoriais temos três problemas gravíssimos na nossa cultura e na nossa
relação com a coisa publica e a politica: o personalismo, o patrimonialismo e o
corporativismo. Esses fenômenos da nossa cultura politica permitem a seleção de
pessoas por critério de parentesco ou confiança, independente do fato de serem
ou não as mais competentes para o cargo; a confusão entre bem publico e bem
privado, que fez com que ao longo da nossa historia a apropriação indevida do
interesse publico pelo interesse privado fosse comum na nossa sociedade e o
corporativismo, que defende o interesse “dos nossos” em detrimento de qualquer
visão de bem comum ou interesse público.
A correção
desses males só pode se dar por meio da boa governança, que são mecanismos de vigilância,
monitoramento e controle que impedem o comportamento oportunista ou reduzem a
possibilidade de sucesso daqueles que o empregam, aumentando o risco caso sejam
pegos. Mas os mecanismos de governança por si só não dão conta do problema. É necessária
a orientação por valores e comportamento ético e moral dos indivíduos. Um dos
maiores problemas que a governança busca corrigir é a dos comportamentos
oportunistas. Oliver Williamson, vencedor do premio Nobel de economia, define
comportamento oportunista como a busca pelo auto-interesse com astucia e gula. O
que esse conceito abarca é exatamente o que estamos vendo agora: Os políticos eleitos
recebem um mandato dos eleitores para representa-los. Nesse caso especifico,
quem venceu a eleição o fez para reduzir o aparelhamento do Estado e seu uso
para projetos de poder que não foram aprovados nas urnas, mas infiltrados nas instituições
sem aprovação ou consentimento da maioria e financiado por esquemas de
corrupção.
Logo, o
mandato era para acabar com males derivados do oportunismo, que chegou a
ultrapassar o limite do crime organizado.
Teoricamente,
o que o eleitor buscou na urna foi honestidade e competência. Isso corrigiria
os males históricos e reorientaria a gestão publica pelos conceitos mais modernos
de transparência e meritocracia.
Todos os
nossos estudos sobre o “custo Brasil” e sobre a baixa competitividade e baixa
produtividade da nossa economia vem confirmando que a baixa confiança é o
principal fator que explica nossa posição ruim em todos os ranking globais.
Confiança é o principal ativo intangível das economias e um fator critico de
sucesso para a gestão publica e privada. De acordo com os estudos do World
Values Survey o Brasil é um dos países do mundo onde há a menor propensão a
confiar. O Marco Tulio Zanini, meu marido, publicou um livro chamado “Confiança”
em que esse tema é estudado a fundo. Um
orientando meu defendeu recentemente uma tese em que prova que a baixa
confiança é o que explica nossa baixa competitividade. A baixa propensão a
confiar afeta negativamente a cooperação econômica, impede o aprimoramento das
instituições, aumenta os custos de transação entre agentes econômicos e impede
a gestão do conhecimento e da inovação.
O que afeta
negativamente a confiança? Os comportamentos oportunistas e as incertezas. E
essas duas coisas estão correlacionadas.
Precisamos
aumentar a confiança e para isso é necessário aumentar a confiabilidade. Esse
fato, da promoção, afeta negativamente a ambas. O novo governo, idealmente, para reduzir o
custo Brasil precisa também aumentar a confiabilidade reduzindo comportamentos
oportunistas e incertezas. O fato da promoção atua na direção oposta.
Isso
estaria claro nas democracias mais maduras. Na nossa não está. Mas o curioso
não é apenas esse fato, tão comum no Brasil de imbricação do interesse publico
e privado. O curioso é que o cidadão que elegeu essa chapa, e que tanto
criticou o PT por oportunismo e aparelhamento, agora defende o Mourão. Ora,
Mourão pode e talvez seja, fruto da nossa cultura politica. Talvez tenha achado
que não estava fazendo nada demais afinal isso sempre foi legitimo no Brasil.
Sim. Mas agora não é mais. Ainda bem.
Isso nos
faz lembrar Getúlio Vargas, escancarando os problemas da nossa republica: para
os amigos tudo, para os inimigos, e, claro, para o cidadão comum fora das
relações com os políticos, a lei! Esse é a base da nossa republica dos
desiguais. Desiguais perante a lei e desiguais em relação às benesses do poder
publico.
A
democracia madura, no entanto, é a do império das leis: as leis são iguais para
todos e todos estão a ela submetidos. A evolução institucional e politica do
Brasil precisa ir nessa direção.
Não podemos
ser tolerantes com ambiguidades éticas e morais ou suspeitas de comportamentos
oportunistas. E para os Cristãos que defendem isso sugiro a leitura do primeiro
volume da “Cidade de Deus” de Santo Agostinho, especialmente o capitulo sobre
por que a omissão é pecado. Ele afirma que quando o tal “cidadão de bem” é conivente
com o erro, por auto-interesse, por comodismo, por lealdade pessoal, por
necessidade de afiliação, etc. o mal cresce. Logo, o mal só cresce por omissão
e conivência dos bons.
Temos dois
dilemas difíceis no Brasil: 1) O cidadão comum aceita se vincular às lideranças
politicas não como um cidadão livre, mas por lealdade cega aos poderosos. E
isso está por trás da nossa vocação para sistemas autoritários. Na direita e na
esquerda. Por isso o nosso sistema politico gera a visão de inimigos e o
conflito enorme que temos hoje. A maioria parece mais interessado em tirar o
oponente do poder para colocar a sua tribo do que aprimorar as instituições
para que funcionem para todos os brasileiros. 2) E o cidadão aceita falhas morais.
Desde que seja daqueles que estão do seu lado. O amadurecimento democrático pressupõe
que cada cidadão trabalhe a sua autonomia, que significa, literalmente, auto +
nomos = a capacidade de dar a si mesmo a lei e a regra, de se auto gerenciar e
de participar civicamente como igual aos políticos, entendendo que esses
precisam se comportar dando satisfação à sociedade dos seus atos e cobrando
isso de todos independente de filiação partidária. Países com polaridade
politica como o nosso tem dificuldade de focar no que interessa: no
aprimoramento das instituições e da cidadania ativa e ética. Logo: o que é
certo é certo. O que é errado é errado. E 50 tons de cinza é filme pornográfico.
E toda essa
discussão nos mostra, tristemente, que o imperativo categórico de Kant e as
ações éticas e morais decorrentes não são compreendidas aqui nos trópicos....
vai ver eu esse calorão está afrouxando nossos valores e princípios.... que
como legumes no caldeirão estão se dissolvendo e misturando coisas que não
poderiam ser misturadas.
Em sintese: não podemos revogar o imperativo categorico. Sob pena de sermos, para sempre, uma republiqueta das bananas. Nem nesse caso e nem em nenhum outro.