terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Sobre o conceito de igualdade, a diferença entre liberais e socialistas e os desafios contemporâneos



      Há uma ideia de igualdade que é muito importante para o pensamento liberal. Há uma ideia de igualdade que é muito importante para o pensamento socialista. Vale tentar entender a diferença.
O conceito liberal de igualdade tem origem na ética protestante e tem um forte elemento de imanência. Há aqui a ideia de que consciência tem autonomia sobre os fatores externos e que se o indivíduo puder escolher, ele (a) saberá o que é melhor para si. Ninguém pode escolher pelo outro e quanto mais livres forem os seres humanos melhor será a sociedade. Todos são iguais nesse sentido: cada indivíduo tem valor em si. Uma vida não vale mais do que a outra. A vida humana é sagrada. A liberdade é fundamental para que o ser humano tenha uma vida plena. A igualdade política (cada indivíduo um voto) e jurídica (todos iguais perante a lei) é básica para a vida em sociedade. Há aqui a ideia de que o poder emana dos cidadãos e de que o Estado precisa ser controlado para que não roube a liberdade dos indivíduos.  Qualquer um com poder demais tende a abusar dele. A liberdade, portanto, emerge onde o “poder pode ser picado em pedaços” . Soma-se a isso a ideia de que o ser humano é egoísta por natureza (expressa na Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith, que é fundante para o liberalismo), e que isso precisa ser levado em conta na organização política da sociedade.
           O conceito de igualdade socialista é relativo à igualdade econômica e ao reconhecimento de que há injustiça na desigualdade. Uns nascem fortes, ricos e saudáveis. Outros nascem fracos, pobres e talvez até doentes. E essa injustiça deveria ser corrigida pela sociedade. Há a ideia de que o homem é bom por natureza, a sociedade que o corrompe (expressa nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx), que recorre a complexa teoria da evolução dialética na história para explicar porque, embora o homem seja bom por natureza, a sociedade, que é um produto seu, o torna mau.
A oposição política se dá porque o conceito liberal de igualdade, nessa perspectiva, é acusado de injusto, porque os mais fortes e mais capazes acabam ficando com mais. Nesse sentido, seria importante um estado forte, com lideranças socialistas, para redistribuir as riquezas. Para os liberais, essa distribuição levaria a todos para a miséria e criaria oportunidades para oportunismos de toda natureza, o que, no fim, acabaria com qualquer motivação para trabalhar, jogando a todos na para uma situação pior.
Parte do debate se dá porque os liberais acreditam que se estamos em uma sociedade livre, onde não se pode prender (só o Estado pode, e no cumprimento da lei) ou escravizar o outro, os indivíduos podem procurar o que é melhor para eles e sair da situação de pobreza: podem empreender, por exemplo. Para os socialistas, a consciência é determinada pelas condições econômicas de produção (há um determinismo econômico) e há uma dependência dos mais pobres em relação aos detentores da propriedade. Marx usa o conceito de alienação e de ideologia para tentar explicar a questão da aceitação da ordem capitalista por parte dos trabalhadores (ou seja, eles aceitam trabalhar porque são alienados). Ou seja, há uma “falsa consciência” dos oprimidos. Daí a importância da liderança. E daí a relação entre socialismo e totalitarismo. O pobre não sabe o que é melhor para ele. Portanto, o conceito de igualdade dos socialistas não é ontológico. Há uns que são melhores do que os outros. Esses têm maiores responsabilidades e maior direito de buscar o poder político em nome dos alienados. Daí também a importância do discurso político da opressão. O partido ou a liderança irão salvar o oprimido “dos opressores”. Sendo o “opressor” um “sistema”, “uma maioria”, que se você não consegue enxergar é porque você é cego ou alienado. Se você não quiser sê-lo, precisa afirmar uma posição de salvação….
       O voto, para os liberais, precisa ser em um igual: outro ser humano com habilidades e competências limitadas, mas com um projeto de gestão pública claro, racional, transparente e que ajuste meios aos fins. Para os socialistas o voto é em uma liderança, capaz de nos salvar de nós mesmos.
                Esse debate reflete as discussões do século XIX sobre a natureza dos homens e as melhores formas de organizar a vida em sociedade. Há, no pensamento liberal do século XIX o pressuposto da independência. Há, no pensamento socialista, o pressuposto da dependência. Isso se traduziu, em termos acadêmicos, no individualismo metodológico da economia, por um lado, e no holismo metodológico de várias correntes da sociologia, por outro. O holismo, na sociologia, vem sendo criticado por vários sociólogos por eliminar o conceito de ação humana. O individualismo metodológico por eliminar os aspectos sociais do comportamento humano, inclusive a cultura, algo que os neoinstitucionalistas buscam resgatar, mas ainda derrapam nos desafios do individualismo metodológico.  

      É necessário progredir para um debate sobre a interdependência. A liberdade com responsabilidade de fato leva nessa direção. É necessário respeitar as liberdades individuais, senão a vida vira um inferno e a produtividade da economia desaparece. Mas é necessário fazer isso levando em conta que a racionalidade humana é fortemente impactada pelas formas de inserção social. Não é possível acreditar ou afirmar que a criança pobre que nasce na favela, não tem acesso à educação e é vulnerável ao crime está em condições de tomar decisões e fazer escolhas da mesma forma que aqueles que foram bem-educados para isso.  Tanto o egoísmo e quanto a solidariedade totalitária precisam ficar para trás. Precisamos pensar nas formas de subsidiariedade que de fato construirão uma sociedade mais livre e mais humana. Liberdade com co-responsabilidade é fundamental para um país com grandes desigualdades. E nesse contexto, a polaridade entre direita e esquerda só aumenta o ódio e a polarização estéril do debate politico. E isso ocorre por que a definição a priori de um conceito de homem funda uma ideologia. Ao fazê-lo, constrói muros. Que tal deixarmos esse debate com os mortos que os criaram e olhar para o futuro?
            O ser humano pode ser egoísta. Mas pode também ser altruísta. É aberto para bem, mas também pode ser aberto para o mal. Precisamos apoiar as pessoas na busca produtiva e evitar que os oportunistas se apoderem do trabalho alheio. Precisamos evitar a construção de um estado monstruoso onde a corrupção e o crime podem se instalar de forma tão robusta quanto a que vemos agora, dragando recursos do trabalho de todos. Mas precisamos, também, cuidar dos mais vulneráveis. O século XXI é o século do "E" - o século XIX foi o século do "OU". Não é uma coisa ou outra. É uma coisa e outra. E só a um jeito de fazer isso: com respeito pelas pessoas, por suas liberdades e estratégias claras e transparentes de subsidiariedade.
               Mas o curioso é como, embora se fale de inovação como valor, em termos de politica muitos preferem manter-se fiéis aos pensadores do passado.  A realidade mudou. A economia mudou. A sociedade e a politica também. O mundo ficou mais complexo. Mais integrado. A volatilidade e a incerteza aumentaram. Precisamos olhar para isso. Construir a partir disso. Precisamos pensar com novas ferramentas. Rever conceitos. Se olharmos para esses pensadores como iguais, pessoas como nós quebrando a cabeça para fazer sentido do que viam e viviam, podemos enxergar a quantidade de trabalho que há para fazer. Eles não poderiam antecipar o que estamos vivendo. Pensaram para a sua época. Mas curiosamente foram transformados em oráculos, em textos sagrados com verdades reveladas.... é curiosa essa resistência à mudança e as reações emocionais que geram.