"Mãe, o Vinícius perguntou se eu sou
namorada dele. Eu sou?" Foi assim que Maria Luiza, com seus 6 aninhos de
idade, nos surpreendeu com mais uma de suas perguntas difíceis de responder.
Foi durante as férias que Maria Luiza e Vinícius se conheceram. Brincaram,
brigaram e descobriram o dom que é gostar de alguém. É a alegria, a completude,
a mágica de estar com outro no mundo. É muito mais legal brincar, brigar, viver
com quem se gosta. Ela sorria feliz. Fiquei encantada.
Contei
para o Marco Tulio, que não sabia o que dizer e pensar! O que significa isso?
De modo geral não gostou. Afinal, era a filhinha dele que estava em questão.
Mas ficou com ciúmes. No caso de ser algo que não deveria ser.
Hoje
entrei na igreja para marcar uma missa de sétimo dia de uma pessoa especial.
Encontrei, logo na entrada, o meu padre preferido. Estava todo sujo e suado, de
camiseta de malha e uma vassoura na mão. Estava desmontando o presépio. Quando
ele me perguntou como estavam as coisas, eu disse que estava tudo bem, e contei
a história acima. Disse que seu amigo estava na dúvida sobre como se sentir
frente as descobertas da filha. Me surpreendi com a resposta: ele falou sobre a
sua preocupação com a sensualização precoce da infância, sobre como isso ocorre
no Brasil (fato de Gilberto Freire já menciona em “Casa Grande e Senzala”) e
contou várias histórias sobre o desafio que isso é para os pais e os problemas
que causa para os pequeninos.
Era
isso que estava em questão? Foi isso o que eu pensei quando lhe contei a
historinha?
Em
março desse ano fui a um retiro espiritual em Aparecida do Norte a convite da
CNBB. Fui sem muita expectativa: pré-julguei. Um retiro a convite de Bispos
certamente seria intelectualizado, talvez acadêmico, monótono e com pouco
diálogo. Me enganei. Dom Leonardo estava inspirado. Começou com uma reflexão
sobre a fenomenologia da percepção sem mencionar esse termo. Foi generoso em
traduzir para os leigos. Me peguei fazendo o que eu temia que ele fizesse:
peguei uma fala inspirada e fiquei intelectualizando. Eu e meus vícios...
Dom
Leonardo começou assim: veja uma rosa. A rosa não tem porque, não tem para quê,
não faz nada e não espera nada. Simplesmente é! É assim a natureza. Somos nós
que a ela atribuímos os porquês, os para quês e tantas outras coisas. Se a
nossa avó querida gostasse de rosas, ela nos traz melancolia, saudades ... se
estamos apaixonados nos inspira poesia, se queremos algo para vender nos
desperta a ganância ou o desejo empreendedor. Mas nada disso sai dela. É a
nossa consciência que projeta sobre ela essas questões. Todo o sentido que a
rosa pode ter, todo o sentimento que ela pode despertar, não emana dela, mas da
nossa consciência. Dom Leonardo queria que a conversa fosse para o lado da
Alegria e da Graça. Meus vícios acadêmicos me levaram para o lado da filosofia.
Não
pude evitar, pois esse é o grande mistério que busca desvendar os estudos sobre
a fenomenologia da percepção. Esse é todo o grande desafio da antropologia filosófica,
pois aí reside a essência de tudo o que é humano. Essa é a questão que a
filosofia busca explicar quando investiga o famoso “sujeito cognoscente”, ou
aquele que é ativo em construir o mundo que aprende. É aqui que reside o
mistério do nascimento de Adão e Eva, e com ele a humanidade. Esse mito,
antropologicamente falando, é um esforço para dar conta do mistério do
surgimento da consciência e da liberdade. Os animais não se relacionam dessa
forma com a natureza. Simplesmente são. Não tem consciência da sua vontade, da
sua identidade, da sua liberdade. Enquanto similares a outros animais, Adão e
Eva viviam de acordo com as leis da espécie. Reagiam aos institutos. Ao morder
a maçã despertam para a consciência de si. Com essa vem a liberdade, o medo, a
vergonha, e todo o resto. Foi a partir dai que a humanidade começa a projetar
seu imaginário sobre o mundo, e a co-criá-lo.
Dom
Leonardo me tira das reflexões acadêmicas com outra metáfora. Ele fala sobre
uma criança brincando em uma fonte. A fonte é metáfora da graça, jorra em
abundância. A criança enche e esvazia potes e canecas. Vive a alegria da
experiência de brincar com a água. Nós, adultos, conscientes de que a água não
existe em abundância em todos os lugares, usando nosso livre arbítrio e nossa vontade,
construímos nossa casa longe da nascente. E ai precisamos de uma caixa d’agua.
A criança já não pode brincar livre com a água, pois esvazia a caixa. É o mundo
da responsabilidade, da escassez e dos limites. Ser livre pressupõe esse ônus.
Mas Dom Leonardo queria nos reconectar com a ideia de graça e pergunta se não
vemos a possibilidade de viver com a liberdade e com a graça. Ser responsáveis
com recursos, mas capazes de nos regozijar com a alegria da graça. Era
necessário pensar sobre isso. O retiro acabou sendo sobre a importância de
parar para nos reconectar com a graça e recobrar a alegria. Esse era o desafio
da busca pela espiritualidade que faríamos naquele dia. Isso é sobre esvaziar a
mente, ter um novo olhar, ser capaz de ver o belo.
Mas
os hábitos de pensamento e as batalhas da vida nos afastam disso. Meu querido
amigo padre, tão responsável e preocupado com as crianças e com a proteção da
infância, viu na minha história mais um episódio lastimável de sensualização
precoce, resultado da mídia, da exposição às novelas, que arrancam precocemente
as crianças das preocupações lúdicas da infância... projetou seus medos e seus
receios sobre o fato... e não se regozijou com ele.
Eu,
que não milito tão duramente no mundo dos pecados que destroem vidas, e que
estava simplesmente olhando a minha filhinha, tão linda, tão inocente, vi o
outra coisa...
A
pergunta dela e do Vinícius era de fato a seguinte: como se chama essa coisa
mágica que estamos sentido? O que significa essa felicidade? Como entender essa
descoberta? Achei lindo: crianças saudáveis e inteligentes, capazes de perceber
e pensar sobre o que sentem, tentando fazer sentido do mundo e precisando de
palavras e conceitos para pensar. Preciso recomendar para meu padre favorito um
retiro com Dom Leonardo. A vida está lhe pesando nos ombros e ele precisa de
tempo para aliviar a alma. Mas continuo,
por meu lado, encantada com como funciona a mente, como precisamos das palavras
e dos conceitos para pensar, como é linda a descoberta do mundo e como é bom
ter filhos e poder observar e viver momentos como esse... Ainda estou em estado
de graça... Curiosa essa nossa relação com a realidade exterior... Se eu não
tivesse de férias talvez tivesse só respondido sim ou não (afinal, vocês só tem
6 anos e isso virá depois!).
Me
lembrei novamente de outra metáfora de Dom Leonardo... Ele conta que uma vez
chegou em uma casa pobre numa região que estava faltando água. Num ato de
generosidade comovente uma pobre mulher lhe ofereceu um copo d’agua. A água
estava turva com o barro e ele com nojo não bebeu, mas não podia rejeitar.
Colocou ao lado enquanto conversava. Quando olhou para o copo a lama havia
decantado e a água está límpida. Ele bebeu. A alma é assim disse ele. Há
momentos em que precisa parar para decantar, ficar límpida para viver com
alegria.
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