terça-feira, 3 de março de 2015

Ghandi, a cultura de saúde e segurança e nossa eterna complacência

Observo comportamentos. Por vício e profissão. Vejo a crescente irritação dos brasileiros com a ineficiência de nossos serviços, com a corrupção desenfreada de nossos políticos, com a dificuldade de desenvolvimento em diversos setores em nosso país. Ouço expressões como: brasileiro é assim, é porque o povo brasileiro age de tal maneira. Mas quem seriam esses brasileiros, que são assim, que atrapalham o desenvolvimento de nosso país? Ontem observando o comportamento das pessoas na chegada do avião ao Santos Dumont pensei: esses brasileiros somos nós. 

Todos nós, ao menos em teoria, compartilhamos a ideia de que a Saúde, Segurança e cuidado com o Meio Ambiente estão diretamente ligados à preservação da vida, e isso é valor para todos nós. Sabemos que qualquer meio de transporte tem riscos. Sabemos que o manuseio de combustíveis, fundamental para que o avião cumpra sua tarefa de transportar traz riscos.

Esperamos que as companhias aéreas sejam responsáveis com os procedimentos e padrões de segurança e que treine suas tripulações para zelar por elas. Estaremos prontos para atacá-los se não fizerem sua parte. Estamos prontos para gritar, xingar, acusar... Em suma: defender nossos “direitos”. E é então que acontece... O comandante pede: desliguem os celulares. Olho ao meu redor. A moça do meu lado finge que desliga. O rapaz do outro ignora e continua a escrever sua mensagem. A aeromoça (provavelmente exausta de pedir que se cumpra a ordem, porque é uma ordem, finge que não vê – já deve ter se estressado muito com a falta de educação desses indivíduos).

Há riscos? Claro. Ou alguém imagina que esse procedimento seja repetido em todos os voos porque o comandante não tem mais o que fazer? Na chegada, o comandante pede: não liguem os celulares até a chegada no saguão do aeroporto. Há risco? Claro. O mesmo que há nos postos de gasolina, onde há uma placa indicando que é proibido o uso de celular. Inúmeros acidentes sérios já aconteceram. As empresas ficam em uma posição terrível: precisam que os procedimentos sejam cumpridos, mas não podem causar pânico.

Várias pessoas têm medo de avião. Imagine o comandante explicando os riscos em detalhe para que todos se sensibilizem... Imagine o medo de alguém, mais sensível, ao imaginar que, havendo o risco, alguém não esteja cumprindo a recomendação e ele(a) possa ser atingido? Qual é o grau de segurança do sistema contra pequenas desobediências? Antes que o comandante termine de falar, vejo a enorme maioria dos passageiros ligando o celular e usando-os para mandar mensagens ou falar – em um flagrante desrespeito com a norma de segurança e com o comandante.

Em países onde as pessoas entendem, minimamente, que as regras são meios para um fim maior, nesse caso, preservar a segurança, tendem, na dúvida, a cumprir a recomendação. E o que nós fazemos? Descumprimos, desrespeitamos o comandante no exercício da sua função, afrontamos os comissários, porque estamos com pressa, precisamos falar, temos ataque de ansiedade descontrolada. Afinal, ninguém pode nos impedir de fazer o que queremos! É a prova da nossa incapacidade de agir orientados por valores. É a total dissociação entre valores e comportamento. Somos nós nos enganando e traindo a nós mesmos. Somos nós, incapazes de agir a altura do que esperamos que os outros façam. Somos nós, traindo nossos ideais de sociedade. Todos, cada um.

Então vemos que o Brasil tem taxas alarmantes de acidentes, de trabalho, de trânsito e domésticos. Muitos, mas muitos brasileiros morrem todos os anos em decorrência dessas falhas. De quem é a culpa? Fica mais fácil para nós colocar a culpa no outro. No governo, na autoridade, na empresa, nas instituições. Temos uma grande capacidade em nos desimplicar das coisas, das responsabilidades, das causas, das escolhas, das consequências dos nossos atos, das nossas ações e das nossas omissões. E nos indignamos, porque ninguém resolve as coisas por nós. Os acidentes acontecem e “as autoridades não fazem nada”. As “autoridades” estavam naquele avião.


Pessoas que muitas vezes se dizem preocupadas em resolver o problema da “cultura de segurança” em suas empresas, andam nesses aviões. Eu convido essas pessoas e todos os brasileiros a questionar: Quando começaremos a pensar sobre o nosso papel e nossa responsabilidade com a sociedade que queremos ter e viver? Eu quis falar – um alemão falaria – com o indivíduo do lado que coloca a segurança de todos em risco. Mas falar com quem, quando todos estão fazendo a mesma coisa? A falta de alinhamento entre as pessoas que se consideram de bem, que compartilham dos valores, e de disciplina pessoal para agir baseado em valores é tão grande, que quem fala é o chato, o louco, é mal educado, é aquele que se mete na vida dos outros. Então nos omitimos. E aí dá no que dá. Nos acidentes, na política, na vida... E no final do dia postamos, no facebook, uma linda frase de Mahatma Gandhi que diz: SEJA VOCÊ A MUDANÇA QUE QUER VER NO MUNDO. E mandamos para os outros.