Sobre o conceito de igualdade, a
diferença entre liberais e socialistas e os desafios contemporâneos
Há uma ideia de igualdade que é
muito importante para o pensamento liberal. Há uma ideia de igualdade que é
muito importante para o pensamento socialista. Vale tentar entender a
diferença.
O conceito liberal de igualdade
tem origem na ética protestante e tem um forte elemento de imanência. Há aqui a
ideia de que consciência tem autonomia sobre os fatores externos e que se o
indivíduo puder escolher, ele (a) saberá o que é melhor para si. Ninguém pode
escolher pelo outro e quanto mais livres forem os seres humanos melhor será a
sociedade. Todos são iguais nesse sentido: cada indivíduo tem valor em si. Uma
vida não vale mais do que a outra. A vida humana é sagrada. A liberdade é
fundamental para que o ser humano tenha uma vida plena. A igualdade política
(cada indivíduo um voto) e jurídica (todos iguais perante a lei) é básica para
a vida em sociedade. Há aqui a ideia de que o poder emana dos cidadãos e de que
o Estado precisa ser controlado para que não roube a liberdade dos indivíduos. Qualquer um com poder demais tende a abusar
dele. A liberdade, portanto, emerge onde o “poder pode ser picado em pedaços” .
Soma-se a isso a ideia de que o ser humano é egoísta por natureza (expressa na
Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith, que é fundante para o
liberalismo), e que isso precisa ser levado em conta na organização política da
sociedade.
O conceito de igualdade
socialista é relativo à igualdade econômica e ao reconhecimento de que há
injustiça na desigualdade. Uns nascem fortes, ricos e saudáveis. Outros nascem fracos,
pobres e talvez até doentes. E essa injustiça deveria ser corrigida pela
sociedade. Há a ideia de que o homem é bom por natureza, a sociedade que o
corrompe (expressa nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx), que
recorre a complexa teoria da evolução dialética na história para explicar
porque, embora o homem seja bom por natureza, a sociedade, que é um produto
seu, o torna mau.
A oposição política se dá porque
o conceito liberal de igualdade, nessa perspectiva, é acusado de injusto,
porque os mais fortes e mais capazes acabam ficando com mais. Nesse sentido,
seria importante um estado forte, com lideranças socialistas, para redistribuir
as riquezas. Para os liberais, essa distribuição levaria a todos para a miséria
e criaria oportunidades para oportunismos de toda natureza, o que, no fim,
acabaria com qualquer motivação para trabalhar, jogando a todos na para uma
situação pior.
Parte do debate se dá porque os
liberais acreditam que se estamos em uma sociedade livre, onde não se pode
prender (só o Estado pode, e no cumprimento da lei) ou escravizar o outro, os
indivíduos podem procurar o que é melhor para eles e sair da situação de
pobreza: podem empreender, por exemplo. Para os socialistas, a consciência é
determinada pelas condições econômicas de produção (há um determinismo
econômico) e há uma dependência dos mais pobres em relação aos detentores da
propriedade. Marx usa o conceito de alienação e de ideologia para tentar
explicar a questão da aceitação da ordem capitalista por parte dos
trabalhadores (ou seja, eles aceitam trabalhar porque são alienados). Ou seja,
há uma “falsa consciência” dos oprimidos. Daí a importância da liderança. E daí
a relação entre socialismo e totalitarismo. O pobre não sabe o que é melhor
para ele. Portanto, o conceito de igualdade dos socialistas não é ontológico.
Há uns que são melhores do que os outros. Esses têm maiores responsabilidades e
maior direito de buscar o poder político em nome dos alienados. Daí também a
importância do discurso político da opressão. O partido ou a liderança irão
salvar o oprimido “dos opressores”. Sendo o “opressor” um “sistema”, “uma
maioria”, que se você não consegue enxergar é porque você é cego ou alienado.
Se você não quiser sê-lo, precisa afirmar uma posição de salvação….
O voto, para os liberais, precisa
ser em um igual: outro ser humano com habilidades e competências limitadas, mas
com um projeto de gestão pública claro, racional, transparente e que ajuste
meios aos fins. Para os socialistas o voto é em uma liderança, capaz de nos
salvar de nós mesmos.
Esse
debate reflete as discussões do século XIX sobre a natureza dos homens e as
melhores formas de organizar a vida em sociedade. Há, no pensamento liberal do século
XIX o pressuposto da independência. Há, no pensamento socialista, o pressuposto
da dependência. Isso se traduziu, em termos acadêmicos, no individualismo metodológico
da economia, por um lado, e no holismo metodológico de várias correntes da
sociologia, por outro. O holismo, na sociologia, vem sendo criticado por vários
sociólogos por eliminar o conceito de ação humana. O individualismo
metodológico por eliminar os aspectos sociais do comportamento humano,
inclusive a cultura, algo que os neoinstitucionalistas buscam resgatar, mas
ainda derrapam nos desafios do individualismo metodológico.
É
necessário progredir para um debate sobre a interdependência. A liberdade com
responsabilidade de fato leva nessa direção. É necessário respeitar as
liberdades individuais, senão a vida vira um inferno e a produtividade da economia
desaparece. Mas é necessário fazer isso levando em conta que a racionalidade
humana é fortemente impactada pelas formas de inserção social. Não é possível acreditar
ou afirmar que a criança pobre que nasce na favela, não tem acesso à educação e
é vulnerável ao crime está em condições de tomar decisões e fazer escolhas da
mesma forma que aqueles que foram bem-educados para isso. Tanto o egoísmo e quanto a solidariedade totalitária
precisam ficar para trás. Precisamos pensar nas formas de subsidiariedade que
de fato construirão uma sociedade mais livre e mais humana. Liberdade com
co-responsabilidade é fundamental para um país com grandes desigualdades. E nesse contexto, a polaridade entre direita e esquerda só aumenta o ódio e a polarização estéril do debate politico. E isso ocorre por que a definição a priori de um conceito de homem funda uma ideologia. Ao fazê-lo, constrói muros. Que tal deixarmos esse debate com os mortos que os criaram e olhar para o futuro?
O ser humano pode ser egoísta. Mas pode também ser altruísta. É aberto para bem, mas também pode ser aberto para o mal. Precisamos apoiar as pessoas na busca produtiva e evitar que os oportunistas se apoderem do trabalho alheio. Precisamos evitar a construção de um estado monstruoso onde a corrupção e o crime podem se instalar de forma tão robusta quanto a que vemos agora, dragando recursos do trabalho de todos. Mas precisamos, também, cuidar dos mais vulneráveis. O século XXI é o século do "E" - o século XIX foi o século do "OU". Não é uma coisa ou outra. É uma coisa e outra. E só a um jeito de fazer isso: com respeito pelas pessoas, por suas liberdades e estratégias claras e transparentes de subsidiariedade.
Mas o curioso é como, embora se fale de inovação como valor, em termos de politica muitos preferem manter-se fiéis aos pensadores do passado. A realidade mudou. A economia mudou. A sociedade e a politica também. O mundo ficou mais complexo. Mais integrado. A volatilidade e a incerteza aumentaram. Precisamos olhar para isso. Construir a partir disso. Precisamos pensar com novas ferramentas. Rever conceitos. Se olharmos para esses pensadores como iguais, pessoas como nós quebrando a cabeça para fazer sentido do que viam e viviam, podemos enxergar a quantidade de trabalho que há para fazer. Eles não poderiam antecipar o que estamos vivendo. Pensaram para a sua época. Mas curiosamente foram transformados em oráculos, em textos sagrados com verdades reveladas.... é curiosa essa resistência à mudança e as reações emocionais que geram.