Por que é tão difícil, para mim, escolher o candidato no segundo turno?
Algumas
pessoas que votaram em mim no primeiro turno me consultam sobre o segundo. Perguntam
a minha opinião. Mas eu não sei em quem votar. Mas falo agora como cidadã
comum, não mais candidata, não mais disputando esse cargo. Explico aqui a razão da minha dificuldade. Eu
acredito que o objetivo maior da política é, e deve ser, a busca pelo bem
comum. Quanto a isso, a maioria da população da nossa cidade concorda. O grande
desafio é definir o que é o bem comum, o que é do melhor interesse da maioria e
quais são as melhores formas de produzi-lo.
Podem haver
tantas definições de bem comum quanto há habitantes em nossa cidade. Se os critérios
de escolha forem baseados no egoísmo e mesquinharia, é impossível chegar a um
consenso. Chegaremos, sim, àquilo que Hobbes chamou de a guerra de todos contra
todos. E quanto mais mergulharmos nas vontades individuais em relação às formas
de chegar até esse lugar desejado e abstrato, o lugar do bem comum, maiores
tenderão a ser as discordâncias. Por isso a democracia é um exercício difícil,
que demanda a construção de partidos, a organização de eleições e o engajamento
em debates. A paz, a prosperidade, a vida e a liberdade dependem de acordos
relativos à ética e lei. Como a felicidade e a satisfação de cada um são
relativas às necessidades de cada indivíduo, aprendeu-se, ao longo dos últimos milênios
de história, que há mais sofrimento humano onde não há liberdade para o indivíduo,
pois o governante pode decidir por nós independente das nossas necessidades e
vontades.
Ao longo da história
o ser humano viveu sob a regra de diferentes tipos de tirania. Desde o começo
da história e da escrita vemos o peso dos sistemas de poder oprimindo os povos.
A opressão dos estrangeiros dominados nas guerras e usados na construção das pirâmides
e palácios dos impérios teocráticos do oriente, o escravismo antigo na
antiguidade clássica, a servidão medieval, a vida sob o absolutismo monárquico,
e a violência das ditaturas na idade moderna e contemporânea são duros
testemunhos do que o excesso de concentração de poder é capaz de produzir em
termos de sofrimento humano. A
democracia tem defeitos. Mas nem de longe se assemelha a esses outros arranjos
em termos de violência e sofrimento.
Uma das
maiores dificuldades da democracia é produzir consenso sobre como atuar no
maior interesse do maior número de pessoas. Como arranjo político, ela está
baseada na ideia de que cada indivíduo deve falar por si e escolher o caminho
de ação que mais representa os seus interesses. Mas sem a capacidade de
formular juízos morais e ser responsável pelos destinos da cidade e dos outros,
isso não funcionaria. Portanto, há outros entendimentos prévios que precisam
ser levados em conta: desde a origem, a democracia baseia-se na premissa de que
as pessoas que compõe a sociedade compartilham de um destino comum. De que elas
estão ligadas, formam uma unidade, seja uma nação ou uma cidade, e de que todos
se beneficiam da paz e da prosperidade que puder ser construída. Há uma outra
ideia subjacente aos acordos democráticos: que em uma nação ou uma cidade as
pessoas compartilham de certos valores e formam, por isso, uma unidade. A
escolha deveria ser sobre os melhores caminhos para a paz e prosperidade
partindo de um certo consenso sobre valores.
O exercício da
democracia pressupõe, portanto, a liberdade com responsabilidade. E isso pressupõe
a aceitação da ética e da lei mediando a relação entre os homens. A ética e a
lei, por sua vez, pressupõe a capacidade de renúncia de cada indivíduo, da sua autodisciplina,
da sua autonomia (auto + nomos = capacidade
de dar a si mesmo a lei e norma). Como Kant, um dos grandes pensadores da ética
colocou: é necessário agir de acordo com o imperativo categórico: aja de tal
forma que sua ação possa servir de exemplo para todos, ser uma “máxima
universal”. Para isso, é fundamental o exercício da razão e busca pelas
virtudes. A relação entre esses termos é forte e direta. A democracia,
portanto, está construída sobre um ideal de ser humano, capaz de cooperar para
o bem coletivo a partir da sua capacidade de limitar seu próprio egoísmo, submetendo-se
a lei e agindo de forma ética.
O conflito de
interesses é da natureza da vida. Se cada indivíduo buscar sempre o maior
prazer e o maior conforto sem levar o outro em conta, não há sociedade
possível. Não é possível ser ético e buscar sempre defender o autointeresse. A
democracia e a liberdade que ela garante dependem da busca por um ser humano
melhor. Tenta-se construí-lo por meio da educação, da busca pela
espiritualidade, pelo convencimento, pela dissuasão ou até mesmo pela força (no
caso dos mecanismos de reforço das leis). Liberdade e razão são duas faces de
uma mesma moeda e foram séculos de esforços na busca pelo aprimoramento
institucional para chegar a esse arranjo.
A liberdade e a razão dependem da busca pela
verdade, esse ponto fugidio no horizonte que, por mais que tentemos nos
aproximar, sempre nos escapa. Os filósofos concordam que, para os seres
humanos, não é possível chegar à verdade, mas apenas às interpretações possíveis
da realidade. Mas não podemos abrir mão do exercício de busca-la. Seja por meio
da ciência, seja por meio da espiritualidade, seja por outro meio qualquer,
pois essa busca é o que permite o desenvolvimento da pessoa, do ser humano, da
sua capacidade de desvelar suas potencialidades, de descobrir formas de lidar
com os riscos e desafios que a vida nos coloca.
Não podemos
abrir mão da ética das virtudes tampouco. Pois é ela que nos ajuda a
desenvolver a temperança, fundamental para pôr freio na nossa tendência aos exageros,
nos gastos, nos prazeres... e a cultivar a paciência, tão necessária ao diálogo
construtivo, a resiliência, tão importante para perseverar na dificílima busca
por fazer diferença no mundo, a diligencia, pois é mais fácil perder para a preguiça,
a bondade, pois é muito fácil julgar os outros, a caridade, que nos permite
entender a dor do outro e cultivar a empatia, a humildade, que controla a nossa
terrível vaidade, a castidade, que nos permite o difícil exercício da lealdade,
e tudo mais que nos permite ser livres,
pois sem autocontrole somos escravos das nossas paixões, e os gregos antigos já
alertavam para os riscos disso....
É no
reconhecimento da existência desses desafios comuns, inelutáveis para todos os
seres humanos, que nos permite pensar na igualdade: somos todos iguais, nessa terrível
luta contra nós mesmos para sermos melhores. É esse reconhecimento também que
nos faz valorizar a liberdade, pois não podemos nos desenvolver sem ela. E valorizar
também a razão: pois é ela que nos ajuda na continua busca pela verdade e pelo
conhecimento, que nos ajuda a relativizar nossos pontos de vista e nos obriga a
aprender continuamente. E a compaixão, conosco e com os outros, pois somos
seres de paixão e emoção e precisamos respeitar essa nossa natureza; há um equilíbrio
tênue, difícil de encontrar, entre autocontrole, autoconhecimento, autocompaixão,
autocomplacência, empatia, altruísmo e egoísmo.
Como a
natureza humana é falha, a liberdade e a democracia pressupõe a constante vigilância.
A vigilância, em termos de gestão pública, se dá pela boa governança, que são
mecanismos de controle e transparência para garantir que o melhor interesse da
maioria de fato é a bussola para a gestão pública. E isso pressupõe a busca
pela verdade. Pressupõe clareza e pragmatismo, critérios objetivos de alocação
de recursos, discutidos de forma aberta, com dados e fatos rastreáveis, com
honestidade intelectual e verificação de validade das ideias e propostas.
E é por isso
que não consigo escolher dessa vez. Quando vejo pessoas dizendo que devemos
votar no Marcelo Crivella porque Deus quer, quando vemos a imbricação entre
religião e política, voltamos à teocracia ou às teorias de direito divino dos
governantes. Isso destrói a ideia de igualdade entre todos os seres humanos.
Não de igualdade econômica. Mas de igualdade ontológica, essa igualdade
relativa à nossa natureza, feitos de carne e osso e sujeitos às mesmas forças e
fraquezas. E, portanto, da própria ideia de representatividade democrática, pois
Deus escolheria uns e não outros para nos governar por critérios que nós não
conseguimos conhecer. É o fim de liberdade de escolha. Se Deus escolhe por nós,
logo não precisaremos mais de eleições. Quem somos nós, pobres mortais, diante
desse apontamento divino? É o começo do fim do Estado Laico, e com ele do
respeito à diversidade religiosa e das liberdades individuais, pois esse
escolhido por Deus terá maior poder de definir a verdade que deve preponderar
sobre as verdades de todos os demais. Isso me afasta do Crivella.
Mas também não
consigo me aproximar do Freixo. Quando ouço a sua campanha vejo a produção do
discurso em defesa das minorias como se de fato houvesse um sistema, ou uma
maioria, que as perseguisse. Vejo a manipulação discursiva dos fatos para
produzir adesão emocional a causas que, se olhadas de perto, de fato destroem a
própria noção de bem comum e encaminha para a guerra de todos contra todos.
Seus eleitores, principalmente os mais jovens, são engajados na sua campanha
por que discordam da homofobia, da violência contra as mulheres, da morte dos
jovens negros, da discriminação em geral. Mas a maioria da sociedade também
discorda!!!! É difícil localizar essa maioria contra a qual estão lutando!
A nossa
sociedade sempre foi aberta e tolerante. Existem criminosos. Existem os
homofóbicos, existem a violência contra as mulheres e existe a maior
mortalidade dos jovens negros. Mas há leis contra isso. A maioria da sociedade
é não é favor disso e as leis são a prova dessa adesão. Não temos cultura de estupro, não temos cultura
homófobica, não temos grupos de criminosos brancos, índios ou amarelos que saem
para matar negros. Temos dificuldade de
investigar, educar e punir aqueles que descumprem as leis. Temos dificuldades
de apoiar os mais vulneráveis para romper o círculo vicioso da pobreza e da violência.
Temos dificuldades gerenciais. Mas concordamos sobre a maioria dos problemas.
Então por que dividir? Por que criar a sensação de perseguição e ódio?
Freixo, como
historiador, sabe que o sentimento de pertencimento à uma nação vem enfraquecendo
e que a modernidade produziu a fragmentação das identidades e a abalou os
quadros de referência. Stuart Hall, dentre outros, vem estudando esse efeito. Conforme
ele, as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade não mais fornecem "sólidas localizações" para os
indivíduos. O que existe agora é descentramento, deslocamentos e ausência de
referentes fixos ou sólidos para as identidades. Nesse cenário, a identificação
surge por empatia com o sofrimento do outro. Há o crescimento da emotividade e
do subjetivismo. E a campanha do Freixo cresce sobre esses dois pilares. O
sofrimento subjetivo (todo o sofrimento de fato é subjetivo, as me refiro a
esse de “como eu me sinto quando alguém me diz algo que me causa uma sensação
ruim) ganha a mesma relevância do sofrimento causado pela miséria, pela doença
e pelo abandono. A causa das minorias se dá contra inimigos genéricos e imaginários
e perde de vista a situação de vulnerabilidade de grupos sociais que deveriam
ser o foco mais direto das políticas públicas, e aqui me refiro especialmente à
fragilidade das mães negras e pardas nas nossas favelas e outros grupos
vulneráveis.
Olhando para o discurso do Freixo, cheio de
desejos de estatização e foco no papel do estado, é impossível não ver que a
criação de uma empresa estatal de transporte público roubará recursos para
resgatar essas mulheres da miséria para dar transporte subsidiado para jovens
universitários que em relação a elas formam uma elite. É o socialismo às
avessas. É a dispersão de recursos públicos sem um plano de ação coerente com
capacidade de promover o bem comum. Com a imensa carga tributária que hoje incide
sobre o consumo, quem mais paga imposto são os mais pobres, que precisam usar
toda a sua renda para consumir. Serão os mais pobres a pagar pela dispersão dos
recursos e pela criação de empresas estatais. Nossos jovens socialistas votam a
favor do aumento dos impostos sobre os mais pobres, pois é daí que virão os
recursos para tudo o que o Freixo propõe! Não há como vir de outro lugar. É o
socialismo que tira dos pobres. Nossos jovens votam sem entender o fluxo de
recursos na sociedade, sempre da sociedade civil e dos indivíduos para o
Estado! E sem entender o impacto da dissipação dos recursos públicos sobre o
aumento da pobreza! Andaram matando muita aula, não leram os textos certos ou
simplesmente não pararam para entender como as coisas funcionam na prática,
nesse tecido duro da vida que insiste em resistir aos nossos malabarismos linguísticos
e as nossas noções de justiça abstratas, construída sobre conceitos que
distorcem a realidade, mais do que a iluminam!
Todos os estudos
do Banco Mundial (ver Global Gender Gap Report, disponível na web em PDF) e da
ONU (ver metas do milênio) confirmam que já uma relação entre miséria crônica e
gênero. A enorme maioria (mais de 80%, chegando a 90% dependendo da região) dos
miseráveis do mundo são mulheres e crianças até 10 anos dependentes dela. A
causa, é a maternidade. O abandono das mães pelos homens (na nossa cidade,
cerca de 48% dos domicílios são sustentados por mulheres) gera a terrível situação
de vulnerabilidade desses indivíduos. Para sair para trabalhar, a mãe deixa as
crianças vulneráveis. Se não sair para trabalhar, ficam miseráveis. Esses
jovens, vítimas de múltiplas formas de violência, física, sexual e/ou psicológica
e abandono, são facilmente recrutados pelo tráfico e outros tipos de crimes. São
eles que matam. E são eles que morrem. Nossa polícia pode ser melhorada. Mas
não é ela a única ou a principal causa da enorme mortalidade de jovens negros.
É o crime. E a saída é o foco nas mães e na proteção dessas crianças, com
creches horário integral ou até 24 horas, para as mulheres que trabalham à
noite. Como essas mães tem dificuldade de permanecer no mercado de trabalho,
criar essas creches gerando emprego ou oportunidade de empreendedorismo para
elas seria a política pública que mais resultados teria na construção da paz e
da prosperidade na nossa cidade, pois atuaria preventivamente sobre o crime e
proativamente na redução da miséria. Os recursos
são poucos. Foco é fundamental.
Mas ao invés de
fazer isso, Freixo cria inúmeros inimigos imaginários e cria um programa de
governo que promete dissipar recursos em diferentes áreas e iniciativas de
forma errática cujo resultado obvio será a perpetuação da miséria e do crime e
a falência da prefeitura. E aprova esse
projeto junto a esses públicos engajado pela emoção e pela empatia produzido
por um discurso de ódio de todos contra todos. Se ganhar, e conseguir colocar o
que promete em prática, essa mãe provavelmente pagará mais do que os 50% que já
paga de imposto sobre a energia elétrica, 18% do feijão dos seus filhinhos,
dará mais do que um iogurte para o governo a cada dois que coloca na mesa das
crianças. Não está claro para esses jovens que o programa de governo do Freixo
só é possível a esse custo. E isso é, no mínimo, muito, mas muito injusto
mesmo.
Em ambos os
casos é o fim da razão, o fim da racionalidade no uso de recursos escassos e o
fim de um projeto de sociedade democrática construído sobre a ética e a potência
humana. Infelizmente não há menos pior. Pois ambos diminuem o ser humano,
diminuem o cidadão, na sua capacidade, na sua liberdade de escolha, na sua
autonomia, como caminho para um projeto de poder.
A razão, a consciência
e a ética não são o caminho mais duro. São o único caminho. Não há solução
mágica. Não há ser humano capaz de eliminar todos os sofrimentos dos outros. A
vida humana, o indivíduo, continua com seus riscos, com suas batalhas, com suas
derrotas e com suas vitorias. A política feita a despeito da liberdade e da
razão ameaçam séculos de esforços civilizatórios. Produz mais pobreza e mais
sofrimento. Não há bons resultados possíveis se escolhermos qualquer uma dessas
rotas. E é muito difícil antecipar os todos os resultados ruins que podem
gerar. Por isso não consigo decidir.