sábado, 15 de outubro de 2016

Por que é tão difícil, para mim, escolher o candidato no segundo turno?

Algumas pessoas que votaram em mim no primeiro turno me consultam sobre o segundo. Perguntam a minha opinião. Mas eu não sei em quem votar. Mas falo agora como cidadã comum, não mais candidata, não mais disputando esse cargo.  Explico aqui a razão da minha dificuldade. Eu acredito que o objetivo maior da política é, e deve ser, a busca pelo bem comum. Quanto a isso, a maioria da população da nossa cidade concorda. O grande desafio é definir o que é o bem comum, o que é do melhor interesse da maioria e quais são as melhores formas de produzi-lo.
Podem haver tantas definições de bem comum quanto há habitantes em nossa cidade. Se os critérios de escolha forem baseados no egoísmo e mesquinharia, é impossível chegar a um consenso. Chegaremos, sim, àquilo que Hobbes chamou de a guerra de todos contra todos. E quanto mais mergulharmos nas vontades individuais em relação às formas de chegar até esse lugar desejado e abstrato, o lugar do bem comum, maiores tenderão a ser as discordâncias. Por isso a democracia é um exercício difícil, que demanda a construção de partidos, a organização de eleições e o engajamento em debates. A paz, a prosperidade, a vida e a liberdade dependem de acordos relativos à ética e lei. Como a felicidade e a satisfação de cada um são relativas às necessidades de cada indivíduo, aprendeu-se, ao longo dos últimos milênios de história, que há mais sofrimento humano onde não há liberdade para o indivíduo, pois o governante pode decidir por nós independente das nossas necessidades e vontades.
Ao longo da história o ser humano viveu sob a regra de diferentes tipos de tirania. Desde o começo da história e da escrita vemos o peso dos sistemas de poder oprimindo os povos. A opressão dos estrangeiros dominados nas guerras e usados na construção das pirâmides e palácios dos impérios teocráticos do oriente, o escravismo antigo na antiguidade clássica, a servidão medieval, a vida sob o absolutismo monárquico, e a violência das ditaturas na idade moderna e contemporânea são duros testemunhos do que o excesso de concentração de poder é capaz de produzir em termos de sofrimento humano.  A democracia tem defeitos. Mas nem de longe se assemelha a esses outros arranjos em termos de violência e sofrimento.
Uma das maiores dificuldades da democracia é produzir consenso sobre como atuar no maior interesse do maior número de pessoas. Como arranjo político, ela está baseada na ideia de que cada indivíduo deve falar por si e escolher o caminho de ação que mais representa os seus interesses. Mas sem a capacidade de formular juízos morais e ser responsável pelos destinos da cidade e dos outros, isso não funcionaria. Portanto, há outros entendimentos prévios que precisam ser levados em conta: desde a origem, a democracia baseia-se na premissa de que as pessoas que compõe a sociedade compartilham de um destino comum. De que elas estão ligadas, formam uma unidade, seja uma nação ou uma cidade, e de que todos se beneficiam da paz e da prosperidade que puder ser construída. Há uma outra ideia subjacente aos acordos democráticos: que em uma nação ou uma cidade as pessoas compartilham de certos valores e formam, por isso, uma unidade. A escolha deveria ser sobre os melhores caminhos para a paz e prosperidade partindo de um certo consenso sobre valores.
O exercício da democracia pressupõe, portanto, a liberdade com responsabilidade. E isso pressupõe a aceitação da ética e da lei mediando a relação entre os homens. A ética e a lei, por sua vez, pressupõe a capacidade de renúncia de cada indivíduo, da sua autodisciplina, da sua autonomia (auto + nomos = capacidade de dar a si mesmo a lei e norma). Como Kant, um dos grandes pensadores da ética colocou: é necessário agir de acordo com o imperativo categórico: aja de tal forma que sua ação possa servir de exemplo para todos, ser uma “máxima universal”. Para isso, é fundamental o exercício da razão e busca pelas virtudes. A relação entre esses termos é forte e direta. A democracia, portanto, está construída sobre um ideal de ser humano, capaz de cooperar para o bem coletivo a partir da sua capacidade de limitar seu próprio egoísmo, submetendo-se a lei e agindo de forma ética.
O conflito de interesses é da natureza da vida. Se cada indivíduo buscar sempre o maior prazer e o maior conforto sem levar o outro em conta, não há sociedade possível. Não é possível ser ético e buscar sempre defender o autointeresse. A democracia e a liberdade que ela garante dependem da busca por um ser humano melhor. Tenta-se construí-lo por meio da educação, da busca pela espiritualidade, pelo convencimento, pela dissuasão ou até mesmo pela força (no caso dos mecanismos de reforço das leis). Liberdade e razão são duas faces de uma mesma moeda e foram séculos de esforços na busca pelo aprimoramento institucional para chegar a esse arranjo.
 A liberdade e a razão dependem da busca pela verdade, esse ponto fugidio no horizonte que, por mais que tentemos nos aproximar, sempre nos escapa. Os filósofos concordam que, para os seres humanos, não é possível chegar à verdade, mas apenas às interpretações possíveis da realidade. Mas não podemos abrir mão do exercício de busca-la. Seja por meio da ciência, seja por meio da espiritualidade, seja por outro meio qualquer, pois essa busca é o que permite o desenvolvimento da pessoa, do ser humano, da sua capacidade de desvelar suas potencialidades, de descobrir formas de lidar com os riscos e desafios que a vida nos coloca.
Não podemos abrir mão da ética das virtudes tampouco. Pois é ela que nos ajuda a desenvolver a temperança, fundamental para pôr freio na nossa tendência aos exageros, nos gastos, nos prazeres... e a cultivar a paciência, tão necessária ao diálogo construtivo, a resiliência, tão importante para perseverar na dificílima busca por fazer diferença no mundo, a diligencia, pois é mais fácil perder para a preguiça, a bondade, pois é muito fácil julgar os outros, a caridade, que nos permite entender a dor do outro e cultivar a empatia, a humildade, que controla a nossa terrível vaidade, a castidade, que nos permite o difícil exercício da lealdade,  e tudo mais que nos permite ser livres, pois sem autocontrole somos escravos das nossas paixões, e os gregos antigos já alertavam para os riscos disso....
É no reconhecimento da existência desses desafios comuns, inelutáveis para todos os seres humanos, que nos permite pensar na igualdade: somos todos iguais, nessa terrível luta contra nós mesmos para sermos melhores. É esse reconhecimento também que nos faz valorizar a liberdade, pois não podemos nos desenvolver sem ela. E valorizar também a razão: pois é ela que nos ajuda na continua busca pela verdade e pelo conhecimento, que nos ajuda a relativizar nossos pontos de vista e nos obriga a aprender continuamente. E a compaixão, conosco e com os outros, pois somos seres de paixão e emoção e precisamos respeitar essa nossa natureza; há um equilíbrio tênue, difícil de encontrar, entre autocontrole, autoconhecimento, autocompaixão, autocomplacência, empatia, altruísmo e egoísmo.
Como a natureza humana é falha, a liberdade e a democracia pressupõe a constante vigilância. A vigilância, em termos de gestão pública, se dá pela boa governança, que são mecanismos de controle e transparência para garantir que o melhor interesse da maioria de fato é a bussola para a gestão pública. E isso pressupõe a busca pela verdade. Pressupõe clareza e pragmatismo, critérios objetivos de alocação de recursos, discutidos de forma aberta, com dados e fatos rastreáveis, com honestidade intelectual e verificação de validade das ideias e propostas.
E é por isso que não consigo escolher dessa vez. Quando vejo pessoas dizendo que devemos votar no Marcelo Crivella porque Deus quer, quando vemos a imbricação entre religião e política, voltamos à teocracia ou às teorias de direito divino dos governantes. Isso destrói a ideia de igualdade entre todos os seres humanos. Não de igualdade econômica. Mas de igualdade ontológica, essa igualdade relativa à nossa natureza, feitos de carne e osso e sujeitos às mesmas forças e fraquezas. E, portanto, da própria ideia de representatividade democrática, pois Deus escolheria uns e não outros para nos governar por critérios que nós não conseguimos conhecer. É o fim de liberdade de escolha. Se Deus escolhe por nós, logo não precisaremos mais de eleições. Quem somos nós, pobres mortais, diante desse apontamento divino? É o começo do fim do Estado Laico, e com ele do respeito à diversidade religiosa e das liberdades individuais, pois esse escolhido por Deus terá maior poder de definir a verdade que deve preponderar sobre as verdades de todos os demais. Isso me afasta do Crivella.
Mas também não consigo me aproximar do Freixo. Quando ouço a sua campanha vejo a produção do discurso em defesa das minorias como se de fato houvesse um sistema, ou uma maioria, que as perseguisse. Vejo a manipulação discursiva dos fatos para produzir adesão emocional a causas que, se olhadas de perto, de fato destroem a própria noção de bem comum e encaminha para a guerra de todos contra todos. Seus eleitores, principalmente os mais jovens, são engajados na sua campanha por que discordam da homofobia, da violência contra as mulheres, da morte dos jovens negros, da discriminação em geral. Mas a maioria da sociedade também discorda!!!! É difícil localizar essa maioria contra a qual estão lutando!
A nossa sociedade sempre foi aberta e tolerante. Existem criminosos. Existem os homofóbicos, existem a violência contra as mulheres e existe a maior mortalidade dos jovens negros. Mas há leis contra isso. A maioria da sociedade é não é favor disso e as leis são a prova dessa adesão.  Não temos cultura de estupro, não temos cultura homófobica, não temos grupos de criminosos brancos, índios ou amarelos que saem para matar negros.  Temos dificuldade de investigar, educar e punir aqueles que descumprem as leis. Temos dificuldades de apoiar os mais vulneráveis para romper o círculo vicioso da pobreza e da violência. Temos dificuldades gerenciais. Mas concordamos sobre a maioria dos problemas. Então por que dividir? Por que criar a sensação de perseguição e ódio?
Freixo, como historiador, sabe que o sentimento de pertencimento à uma nação vem enfraquecendo e que a modernidade produziu a fragmentação das identidades e a abalou os quadros de referência. Stuart Hall, dentre outros, vem estudando esse efeito. Conforme ele, as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade não mais fornecem "sólidas localizações" para os indivíduos. O que existe agora é descentramento, deslocamentos e ausência de referentes fixos ou sólidos para as identidades. Nesse cenário, a identificação surge por empatia com o sofrimento do outro. Há o crescimento da emotividade e do subjetivismo. E a campanha do Freixo cresce sobre esses dois pilares. O sofrimento subjetivo (todo o sofrimento de fato é subjetivo, as me refiro a esse de “como eu me sinto quando alguém me diz algo que me causa uma sensação ruim) ganha a mesma relevância do sofrimento causado pela miséria, pela doença e pelo abandono. A causa das minorias se dá contra inimigos genéricos e imaginários e perde de vista a situação de vulnerabilidade de grupos sociais que deveriam ser o foco mais direto das políticas públicas, e aqui me refiro especialmente à fragilidade das mães negras e pardas nas nossas favelas e outros grupos vulneráveis.
 Olhando para o discurso do Freixo, cheio de desejos de estatização e foco no papel do estado, é impossível não ver que a criação de uma empresa estatal de transporte público roubará recursos para resgatar essas mulheres da miséria para dar transporte subsidiado para jovens universitários que em relação a elas formam uma elite. É o socialismo às avessas. É a dispersão de recursos públicos sem um plano de ação coerente com capacidade de promover o bem comum. Com a imensa carga tributária que hoje incide sobre o consumo, quem mais paga imposto são os mais pobres, que precisam usar toda a sua renda para consumir. Serão os mais pobres a pagar pela dispersão dos recursos e pela criação de empresas estatais. Nossos jovens socialistas votam a favor do aumento dos impostos sobre os mais pobres, pois é daí que virão os recursos para tudo o que o Freixo propõe! Não há como vir de outro lugar. É o socialismo que tira dos pobres. Nossos jovens votam sem entender o fluxo de recursos na sociedade, sempre da sociedade civil e dos indivíduos para o Estado! E sem entender o impacto da dissipação dos recursos públicos sobre o aumento da pobreza! Andaram matando muita aula, não leram os textos certos ou simplesmente não pararam para entender como as coisas funcionam na prática, nesse tecido duro da vida que insiste em resistir aos nossos malabarismos linguísticos e as nossas noções de justiça abstratas, construída sobre conceitos que distorcem a realidade, mais do que a iluminam!
Todos os estudos do Banco Mundial (ver Global Gender Gap Report, disponível na web em PDF) e da ONU (ver metas do milênio) confirmam que já uma relação entre miséria crônica e gênero. A enorme maioria (mais de 80%, chegando a 90% dependendo da região) dos miseráveis do mundo são mulheres e crianças até 10 anos dependentes dela. A causa, é a maternidade. O abandono das mães pelos homens (na nossa cidade, cerca de 48% dos domicílios são sustentados por mulheres) gera a terrível situação de vulnerabilidade desses indivíduos. Para sair para trabalhar, a mãe deixa as crianças vulneráveis. Se não sair para trabalhar, ficam miseráveis. Esses jovens, vítimas de múltiplas formas de violência, física, sexual e/ou psicológica e abandono, são facilmente recrutados pelo tráfico e outros tipos de crimes. São eles que matam. E são eles que morrem. Nossa polícia pode ser melhorada. Mas não é ela a única ou a principal causa da enorme mortalidade de jovens negros. É o crime. E a saída é o foco nas mães e na proteção dessas crianças, com creches horário integral ou até 24 horas, para as mulheres que trabalham à noite. Como essas mães tem dificuldade de permanecer no mercado de trabalho, criar essas creches gerando emprego ou oportunidade de empreendedorismo para elas seria a política pública que mais resultados teria na construção da paz e da prosperidade na nossa cidade, pois atuaria preventivamente sobre o crime e proativamente na redução da miséria.  Os recursos são poucos. Foco é fundamental.
Mas ao invés de fazer isso, Freixo cria inúmeros inimigos imaginários e cria um programa de governo que promete dissipar recursos em diferentes áreas e iniciativas de forma errática cujo resultado obvio será a perpetuação da miséria e do crime e a falência da prefeitura.  E aprova esse projeto junto a esses públicos engajado pela emoção e pela empatia produzido por um discurso de ódio de todos contra todos. Se ganhar, e conseguir colocar o que promete em prática, essa mãe provavelmente pagará mais do que os 50% que já paga de imposto sobre a energia elétrica, 18% do feijão dos seus filhinhos, dará mais do que um iogurte para o governo a cada dois que coloca na mesa das crianças. Não está claro para esses jovens que o programa de governo do Freixo só é possível a esse custo. E isso é, no mínimo, muito, mas muito injusto mesmo.
Em ambos os casos é o fim da razão, o fim da racionalidade no uso de recursos escassos e o fim de um projeto de sociedade democrática construído sobre a ética e a potência humana. Infelizmente não há menos pior. Pois ambos diminuem o ser humano, diminuem o cidadão, na sua capacidade, na sua liberdade de escolha, na sua autonomia, como caminho para um projeto de poder.
A razão, a consciência e a ética não são o caminho mais duro. São o único caminho. Não há solução mágica. Não há ser humano capaz de eliminar todos os sofrimentos dos outros. A vida humana, o indivíduo, continua com seus riscos, com suas batalhas, com suas derrotas e com suas vitorias. A política feita a despeito da liberdade e da razão ameaçam séculos de esforços civilizatórios. Produz mais pobreza e mais sofrimento. Não há bons resultados possíveis se escolhermos qualquer uma dessas rotas. E é muito difícil antecipar os todos os resultados ruins que podem gerar. Por isso não consigo decidir.